"Resistência Visual Generalizada”: algumas reflexões críticas para recordar o passado do século XX na luta contra o presente neo-liberal
De 28 de setembro a 27 de novembro, é possível visitar, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional – Galerias Municipais de Lisboa, a exposição “Resistência Visual Generalizada - Livros de Fotografia e Movimentos de Libertação: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde”, com curadoria de Catarina Boieiro e Raquel Schefer. Aproveitámos uma tarde ensolarada de sábado para visitar a exposição – guiada por uma das curadoras – após a exibição de Sambizanga (1972), filme de Sarah Maldoror recentemente restaurado, que se debruça sobre a opressão colonial portuguesa e o surgimento da resistência anticolonial angolana no início dos anos 60.
Entre 1961 e 1974, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), o Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) conduziram a resistência anticolonial através de organizações políticas guerrilheiras que lutaram pela libertação nacional adoptando uma perspectiva internacionalista inspirada por valores socialistas.
A exposição reúne livros de fotografia, bem como obras de Daniel Barroca, Filipa César e Sónia Vaz Borges, Welket Bungué, Augusta Conchiglia, Moira Forjaz, Silvestre Pestana, Grupo Zero, folhetos, jornais, revistas auto-produzidas e cartazes relativos a essas experiências. Um dos elementos que chama imediatamente a atenção é a escolha das curadoras de não se limitarem apenas a material de países africanos: de facto, encontramos material de toda a Europa e também de outras zonas do mundo onde foram criados comités de solidariedade em apoio à causa. A exposição sublinha fortemente estes laços internacionais e internacionalistas ao ponto de contar “a história” e “as histórias” que foram esquecidas ou propositadamente abafadas: citando Walter Benjamin, poderíamos dizer que Catarina Boieiro e Raquel Schefer “escovam” a história do colonialismo português e do anticolonialismo africano “a contrapelo”. É precisamente desta forma que uma “diferente história” da Revolução dos Cravos pode nascer e ser descoberta com base numa releitura das lutas anticoloniais. Porquê? Porque as curadoras nos mostram, por exemplo, como o movimento de desertores do serviço militar esteve muito próximo e difundiu a propaganda política das guerrilhas africanas, a par da sua contribuição para a reconstrução do terreno político, social e cultural antifascista contra a ditadura de Salazar e Caetano que surgiu graças à rebelião das colónias. Cremos que não é um erro dizer que a liberdade do Abril português é também o resultado deste internacionalismo nascido no contexto revolucionário do Sul Global. Os “condenados da terra” de Franz Fanon acenderam ainda mais o fogo da democracia portuguesa, dinâmicas que são evidentes na “resistência visual” da exposição: a resistência é “visual” porque mostra como a imagem – em especial, fotográfica – foi um elemento importante para dar corpo às ideias e visões de liberdade que os movimentos de resistência veiculavam, chegando a produzir ligações políticas entre os oprimidos do Sul Global e do Norte Global. Os livros de fotografia e as imagens foram, de acordo com a exposição, elementos essenciais para a difusão das ideias de mudança social. É assim que se pode interpretar o conceito de resistência “visual”, bem como é “generalizada”, já as imagens circularam, durante o período abarcado pela exposição, sem direitos de autor ou de propriedade intelectual, seguindo o seu caminho até à revolução. Como Amílcar Cabral sublinhou, as revoluções são um facto cultural e um factor de cultura para os povos: a cultura e as artes são concebidas como campos de produção de efeitos e mudanças sociais concretas, o que é demonstrado pela coleção recolhida pelas curadoras.
Em segundo lugar, a exposição mostra o papel das mulheres na organização guerrilheira: a partir das fotografias redescobertas pelas curadoras, emerge a forma como as mulheres desempenharam um papel fundamental no movimento de resistência. Não só empunham a espingarda como qualquer homem - por outras palavras, não só têm deveres e tarefas político-militares iguais -, como também fazem parte da construção de um pensamento político feminista que hoje é definido como “interseccional”. Os documentos da exposição mostram claramente como a questão do género está interligada com as injustiças de classe e baseadas na cor da pele, e é claro como estes ideais foram transmitidos na ação pedagógica de alfabetização em áreas controladas pela resistência. Por exemplo, a “pedagogia dos oprimidos” do brasileiro Paulo Freire é claramente destacada no projecto sociopolítico das guerrilhas africanas anti-coloniais. A exposição enfatiza tão profundamente o processo de emancipação – a “democracia insurgente” (para a definida pelo filósofo francês Miguel Abensour) – desses processos revolucionários que é difícil acreditar na mudança das narrativas relativas á África contemporânea: as pessoas negras africanas de hoje são retratadas nos meios de comunicação social ocidentais apenas como vítimas (mulheres violadas ou vítimas de mutilação genital e homens torturados por traficantes de seres humanos), completamente privadas de subjectivização política, e o método da guerrilha clandestina é agora apenas uma ferramenta entre muitas dos outros instrumentos o capitalismo global que engorda os senhores da guerra. Tivemos de esperar pelos Zapatistas no México e pelo Confederalismo Democrático no Curdistão para restaurar a dignidade a este tipo de insubordinação política.
Por fim, a questão que nos colocamos é como e o que podemos aprender com essas lutas do século passado? Que ferramentas políticas restam para os movimentos de base de hoje, para qualquer luta contra o “realismo capitalista”, tal como descrito por Mark Fisher? Antes de mais, a exposição oferece uma educação política muito importante tanto para aqueles que, como militantes de base, estão politicamente comprometidos com a cidade de Lisboa ou qualquer outra cidade, bem como para as diferentes níveis de ensino; é necessário que esta contra-narrativa seja divulgada tanto quanto possível. Mas não queremos limitar-nos a apelos moralistas relativos ao campo da cultura ou do conhecimento da história. Os guerrilheiros de Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde reflectiam sobre um novo mundo a construir, uma mudança radical a desenvolver concretamente. Numa palavra, pensavam na revolução. A “revolução” é hoje em dia uma palavra quase impronunciável (ou apenas proferido pelo espetáculo publicitário para promover o último modelo de smartphone!), tal como o questionamento das instituições económicas-políticas que estão ao leme do sistema em que vivemos, que parece ser quase inquestionável. “There is no alternative” dizia a Margareth Tatcher, acrescentando que “não existe a sociedade, existe apenas o individuo”. Essas ideias dominam agora quase todo o campo político, parlamentar e social.
Gostaríamos neste momento de tentar destacar alguns pontos a partir dos quais recomeçar e retomar palavras e ações. O primeiro: uma “lenta impaciência”, tal como definida pelo filósofo francês Daniel Bensaïd. No início dos anos 60, os revolucionários de Angola, de Moçambique, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, sonharam, a partir das condições dadas, com uma libertação que chegou quase quinze anos mais tarde. E, quanto mais dura a ferocidade do colonialismo, mais os actos de resistência se multiplicaram, mesmo à custa das suas próprias vidas. O individualismo fez-nos esquecer a perseverança e a coragem de desobedecer, a responsabilidade de nos rebelarmos à custa da perda dos privilégios e posições a que temos acesso. O segundo: a ação política é simultaneamente oposição política do opressor (é tomada do poder; derrube e produção de uma nova organização social emancipatória) e trabalho político e pedagógico quotidiano, mesmo nos momentos mais monótonos da nossa vida. Aqueles que pensam apenas na conquista do poder (agora exclusivamente por meios eleitorais que são distorcidos a favor do sistema neoliberal) estão tão errados como aqueles que pensam que as boas práticas individuais são suficientes por si próprias. Se começássemos a rasgar os pequenos interstícios da emancipação democrática num sistema que se fecha cada vez mais autoritariamente sobre si mesmo, poderíamos, pelo menos, começar a deixar clara a possibilidade de outras alternativas. Se outros sistemas económicos e sociais caíram no passado, porque é que o capitalismo não pode acabar, mais tarde ou mais cedo? Porque não levantar essas questões, geralmente declaradas como “impossíveis” de resolver? Por vezes, pensamos nas organizações económico-políticas das sociedades como estruturas imutáveis, as formações guerrilheiras não o fizeram, mesmo quando tudo podia parecer perdido. Sonhando e praticando sonhos, as utopias tornam-se realidade. O terceiro e último ponto: as potencias globais fizeram-nos acreditar que a história acabou com Francis Fukuyama e o seu péssimo livro dos anos noventa; fizeram-nos acreditar que a entrada na modernidade tecnológica neoliberal nos levaria a um sistema social por fim justo e sem violações dos direitos humanos; por isso, o debate político e ideológico já não seria necessário. No entanto, acreditamos - ao contrário - que essa luta de classe foi vencida de cima (tal como disse o sociólogo italiano Luciano Gallino), expropriando-nos da memória política que nos permite pensar o protagonismo humano na história. Esta exposição mostra-nos que ainda é possível pensar em nós como protagonistas da história em estruturas comunitárias e coletivas comprometidas com a causa da emancipação.
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Programa paralelo | Sexta-feira, 25 de Novembro:
16h – Torreão Nascente da Cordoaria Nacional (Galerias Municipais de Lisboa)
Visita guiada com as curadoras. Entrada livre.
18h30 – Cinemateca Portuguesa
Projecção de uma versão inédita em Portugal do filme “25” (1977), de José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas (Oficina-Samba), na Cinemateca Portuguesa. Produzido pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, o filme dos cineastas brasileiros articula a documentação das comemorações da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975 com o reemprego e a re-significação de arquivos fotográficos, cinematográficos e textuais coloniais e anti-coloniais. Da mesma maneira que os livros de fotografia exibidos na exposição, 25 exemplifica a busca de uma imagem descolonizada no campo do cinema e a produção de uma contra-narrativa histórica centrada na resistência ao colonialismo.
Mais informação: https://galeriasmunicipais.pt/programa-publico/a-resistencia-das-imagens-descolonizar-a-fotografia-e-o-cinema/
Evento Facebook: https://www.facebook.com/events/1186535745270736